terça-feira, 14 de janeiro de 2014

ALFAMA, SAO VICENTE DE FORA E PANTEÃO NACIONAL - 14 de janeiro de 2014


O dia amanheceu chuvoso e frio. Saí do hotel bem agasalhado e com guarda-chuva, disposto a voltar à Alfama por outro caminho, diferente do percorrido ontem, a fim de visitar dois pontos em especial: a Igreja de São Vicente de Fora e o convento anexo, onde funciona um museu e onde existe o Panteão da Dinastia de Bragança, e o Panteão Nacional.
Desci em direção ao Tejo e no Campo das Cebolas deparei-me com a famosa, e já conhecida exteriormente por mim, Casa dos Bicos.
Tanto Fernando Pessoa quanto José Correia Filho - este porque baseado em Pessoa - comentam o nome deste curioso edifício:
Pessoa: "Este edifício data do século XVI e pertenceu aos descendentes do grande Afonso de Albuquerque. A fachada é toda de pedras pontiagudas, e por essa razão costumavam chamar-lhe Casa dos Diamantes. É uma curiosidade arquitectónica que bem merece ser observada". É só o que o poeta comenta, mesmo porque à sua época a Casa dos Bicos não era o que é hoje.
Lisboa em Pessoa: "Pessoa tem razão. A Casa dos Bicos 'é uma curiosidade arquitetônica que bem merece ser observada'. É um prédio único em Lisboa, construído em 1523 por Brás de Albuquerque, filho de Afonso de Albuquerque, navegador que descobriu Goa e Málaca, respectivamente na Índia e na Malásia. Sua fachada é toda coberta de formas pontiagudas, o que, segundo nosso guia e poeta, fez com que também ganhasse o apelido de Casa dos Diamantes. Seus dois pisos superiores, dos quatro que possui, foram destruídos durante o terremoto de 1755 e restaurados a partir de desenhos preservados em azulejos da época, mantendo inclusive a distribuição bastante irregular de janelas e portas. Passava por uma grande restauração enquanto fazíamos esse guia, mas abriga atualmente o Centro de Documentação sobre os Descobrimentos Portugueses, com exposições e programação que desbravam o tema. Além disso, a Casa dos Bicos está numa região próxima ao Terreiro do Paço, ao Museu da Marinha e à margem do rio Tejo, o que pode dar origem a um passeio interessante pela parte antiga de Lisboa".
Cheguei à Casa dos Bicos (rua dos Bacalhoeiros, 10) e lá está funcionando, há cerca de três anos, a Fundação José Saramago. Segundo um folheto distribuído na casa, "A Fundação José Saramago nasceu porque uns quantos homens e mulheres de diferentes países decidiram um dia que não podiam deixar sobre os ombros de um só homem, o escritor José Saramago, a bagagem que ele havia acumulado ao longo de tantos anos, os pensamento pensados e vividos, as palavras que cada dia se empenham em sair das páginas dos livros para se instalarem em universos pessoais e serem bússolas para tantos, a ação cívica e política de alguém que, sendo de letras e sem deixar de o ser, transcendeu o âmbito literário para se converter numa referência moral em todo o mundo".
Um texto informativo que é pura poesia. Continuando:
"A Fundação tem como objeto promover o estudo da obra literária de Saramago, bem como da sua correspondência e espólio e a respectiva preservação". 
Antes de ter acesso a essa informação, tendo inicialmente apenas a intenção proposta por Pessoa no seu itinerário por Lisboa de "observar" a Casa dos Bicos, resolvi entrar, pois no local está acontecendo uma exposição: "José Saramago: a semente e os frutos". E não me arrependi. Foi talvez a melhor manhã que tive em Lisboa desde que aqui cheguei, uma manhã regada a cultura e simpatia por parte de uma senhora que lá trabalha - Maria Leiria -, professora de Língua e Literatura Portuguesas apaixonada por José Saramago, que entusiasma e abre quem a ouve para o universo do escritor português, único ganhador lusitano de um prêmio Nobel.
Sobre a exposição, lê-se no folheto: "Livros, manuscritos, intervenções literária e políticas e uma reprodução do escritório de José compõem esta mostra permanente". Entretanto, a exposição é ainda muito mais do que isso!
Cheguei ao primeiro andar, local da exposição e logo fui abordado e acolhido pela professora Maria Leiria, que se ofereceu a me acompanhar pela Fundação, o que me permitiu receber informações riquíssimas não apenas sobre a exposição, mas sobre o autor, suas obras, o edifício e muito mais. 
Antes de continuar, recorrendo ao folheto da Fundação, sobre o edifício, "A Casa dos Bicos foi mandada construir em 1523, por Brás de Albuquerque, filho do vice-rei da Índia Afonso de Albuquerque, tendo como modelo o Palácio dos Diamantes, em Ferrara". Segundo entendi a partir da longa conversa que tive com Maria Leiria, esta casa foi construída copiando o palácio italiano porque Brás de Albuquerque comercializava diamantes e a casa mandada construir queria de alguma forma expressar o ramo comercial da família. E a chamou de Casa dos Diamantes. "O povo de Lisboa, em vez de diamantes, viu na fachada simples bicos de pedra e, como o uso faz a lei, assim ficou batizada. Ao longo dos tempos, a Casa dos Bicos serviu as mais diversas funções, privadas e públicas, chegando mesmo a ser utilizada como armazém de bacalhau. Até 2002 albergou a Comissão dos descobrimentos e é, desde junho de 2012, a sede da Fundação José Saramago".
"A Fundação abre esta casa ao público pondo assim termo a um largo período em que nem os lisboetas nem os turistas podiam apreciar os vestígios de épocas passadas que se albergam no piso térreo: um conjunto de estruturas que remonta às primeiras ocupações do espaço, um troço importante da muralha fernandina, tanques romanos (cetárias) de base quadrangular, destinados à salga e conserva de peixes (o famoso garum), e por restos de cerca moura. O edifício é de propriedade municipal, cedido, mediante protocolo assinado em julho de 2008, à Fundação por um período de 10 anos".
exterior da Casa dos Bicos
exterior da Casa dos Bicos

detalhe do exterior da Casa dos Bicos
escadaria interna com inscrições de textos de José Saramago
talvez os documentos mais antigos de Saramago: cadernetas escolares
máscara de Beethoven, mencionada em "Claraboia"
referência à mascara
detalhe da exposição no primeiro piso da Fundação
José Saramago
saramago_3_anos.jpg
foto de José Saramago extraída da internet
a exposição
fotos dos avós de José Saramago



A professora Maria Leiria chamou-se a atenção para estas fotos dos avós de Saramago, pessoas analfabetas, mas que tiveram um papel fundamental na formação do caráter do escritor. Quando foi laureado com o Prêmio Nobel de Literatura em 1998, o discurso proferido por ele inicia-se falando de seus avós. Vale a pena ler o trecho inicial desse longo e belo discurso proferido em Estocolmo,  a 7 de dezembro de 1998, na Academia Sueca, no qual ele fala de várias de suas obras, mas do qual extraímos o trecho que nos interessa agora. Aqui mais poesia em prosa.
"O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever. Às quatro da madrugada, quando a promessa de um novo dia ainda vinha em terras de França, levantava-se da enxerga e saía para o campo, levando ao pasto a meia dúzia de porcas de cuja fertilidade se alimentavam ele e a mulher. Viviam dessa escassez os meus avós maternos, da pequena criação de porcos que, depois do desmame, eram vendidos aos vizinhos da aldeia. Azinhaga de seu nome, na província do Ribatejo. Chamavam-se Jerónimo Melrinho e Josefa Caixinha esses avós, e eram analfabetos um e outro. No Inverno, quando o frio da noite apertava ao ponto de a água dos cântaros gelar dentro da casa, iam buscar às pocilgas os bácoros mais débeis e levavam-nos para a sua cama. Debaixo das mantas grosseiras, o calor dos humanos livrava os animaizinhos do enregelamento e salvava-os de uma morte certa. Ainda que fossem gente de bom carácter, não era por primores de alma compassiva que os dois velhos assim procediam: o que os preocupava, sem sentimentalismo nem retóricas, era proteger o seu ganha-pão, com a naturalidade de quem, para manter a vida, não aprendeu a pensar mais do que o indispensável."
Mais adiante, sobre a avó no fim da vida desta:
"... estando ela sentada, uma noite, à porta da sua pobre casa, onde então vivia sozinha, a olhar as estrelas maiores e menores por cima de sua cabeça, tivesse dito estas palavras: 'O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer.' Não disse medo de morrer, disse pena de morrer, como se a vida de pesado e contínuo trabalho que tinha sido a sua estivesse, naquele momento quase final, a receber a graça de uma suprema e derradeira despedida, a consolação da beleza revelada. Estava sentada à porta de uma casa como não creio que tenha havido alguma outra no mundo, porque nela viveu gente capaz de dormir com porcos como se fossem seus próprios filhos, gente que tinha pena de ir-se da vida só porque o mundo era bonito, gente, e este foi o meu avô Jerónimo, pastor e contador de histórias, que, ao pressentir que a morte o vinha buscar, foi despedir-se das árvores do quintal, uma por uma, abraçando-se a elas e chorando porque sabia que não as tornaria a ver".
O discurso completo pode ser adquirido em livro editado pela própria Fundação ou lido em pdf, na internet:





a medalha do Prêmio Nobel
vista da oliveira no Campo das Cebolas, através de uma janela da Fundação
foto em tamanho natural de José Saramago





interior da Fundação

Uma curiosidade que não está em nenhum guia que conheço e que me foi revelada pela professora Maria Leiria: em frente à Casa dos Bicos existe uma oliveira, a qual ela mostrou-me pela janela, cuja foto postei acima. Pois bem, aos pés dessa oliveira foi depositada parte das cinzas de José Saramago. O banco ao lado dessa oliveira é de uma pedra de mármore única, remetendo ao mármore referido em Memorial do Covento. Há duas inscrições no solo, uma sobre o próprio Saramago e outra, uma citação do final do mesmo livro: "Mas não subiu para as estrelas se à terra pertencia". Uma pegada de elefante em metal faz referência à obra A Viagem do Elefante.
a oliveira
a base da oliveira

"mas não subiu para as estrelas se a terra pertencia"
banco de jardim feito de mármore de Pêro Pinheiro (localidade referida em 'Memorial do Convento').
a pata de elefante
a oliveira e a Casa dos Bicos

Da terra portuguesa tua vieste,
à terra portuguesa retornaste,
e parte de tuas cinzas hoje repousam
incorporadas à terra de Lisboa.
Aqui, aos pés da oliveira antiga,
faço memória de tua grande arte,
que brilha intensa no literário céu,
mesmo que as cinzas tuas jazam nesta terra.

O Presidente da Câmara de Lisboa e a ministra da Cultura depositando as cinzas de José Saramago junto a uma oliveira especialmente plantada para o efeito em frente à Casa dos Bicos, em Lisboa
foto extraída da internet: o Presidente da Câmara de Lisboa, Antonio Costa, e a ministra da Cultura, Gabriela Canavilhas, depositando as cinzas de José Saramago junto a uma oliveira transplantada da sua aldeia natal do escritor, Azinhaga do Ribatejo, em frente à Casa dos Bicos 
foto de Luis Manuel Neves - 18 junho 2011
em frente à Casa dos Bicos
viela da Alfama: Arco de Jesus

Chafariz Del Rey



detalhe do chafariz






Fachada principal do antigo celeiro público, de 1766

Largo do Chafariz de Dentro
Museu do Fado, no prédio do antigo Reservatório e Estação Elevatória da Praia, construído no século XIX






Ermida de Nossa Senhora dos Remédios, à qual não pude fotografar por estar havendo um velório no local

aqui e a seguir, ruas da Alfama









vista do rio Tejo


Panteão Nacional a partir de uma rua próxima

Lisboa em Pessoa: "Alguns historiadores afirmam que a Feira da Ladra teve origem no século XII. Está há mais de um século no largo conhecido como Campo de Santa Clara e, no decorrer de décadas, tornou-se o mais famoso mercado de pulgas de Lisboa, incluído no roteiro de Fernando Pessoa como um local cheio de 'curiosidades realmente preciosas, tanto artísticas como arqueológicas'."
"A feira ganhou esse nome porque, no início, havia ali peças 'de procedência duvidosa'. Hoje, segundo os vendedores, já não é mais assim. O fato é que, com o tempo, ela se tornou um destino turístico importante para se conhecer um pouco mais os lisboetas. O clima de compra e venda se converte numa festa. embalada pelo burburinho das tascas e dos pequenos restaurantes da região, alguns bem tradicionais".
"É um ótimo local para se conhecer pessoas e liberar a criatividade em meio a tantas coisas - roupas, selos, eletrodomésticos, vinis, decoração, bijuterias, livros, moedas, canetas, sapatos, bolsas, pregos, entre outros. Há aqueles que liberam o espírito consumista; outros, o colecionador; e alguns, o arqueólogo".
Esta feira de objetos usados e antigos (nem todos, pois muitos vendem produtos novos, principalmente roupas e sapatos) já na época de Fernando Pessoa, há quase 90 anos anos atrás, funciona aos sábados e às terças-feiras, sendo que o maior movimento, seja de vendedores, seja de visitantes, acontece aos sábados. 
Fernando Pessoa: "Saindo do Largo de São Vicente pela esquerda e passando sob o arco lateral, chegamos a um vasto espaço, o Campo de Santa Clara, onde todas as terças e sábados se pode observar a Feira da Ladra, um pitoresco mercado de sobras e restos, uns aproveitáveis, outros nem tanto, uns novos, outros velhos, mas todos eles constituindo, sem dúvida um negócio realmente proveitoso para os estranhos vendedores que nestes dias espalham os seus artigos ao longo dos passeios ao ar livre. Na verdade se revelam aqui curiosidades realmente preciosas, tanto artísticas como arqueológicas".
Feira da Ladra em uma terça-feira de inverno


























































































































































































Nenhum comentário:

Postar um comentário